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O livro Habitar Portugal 2006-2008 movimenta-se num território difícil: a construção de discurso sobre a arquitectura produzida por arquitectos portugueses. Sendo o catálogo da terceira edição da exposição homónima, ele assinala o progresso e a consolidação de uma dimensão comunicativa em torno da arquitectura portuguesa.1 Não vou recordar o processo de escolha das arquitecturas que compõem o substrato do livro. Por agora interessa apenas reter que essas obras foram encaradas como uma “selecção nacional”, um best of no qual só entraria quem se apresentasse à convocatória ou, por outras palavras, quem fosse a jogo.
     O livro é um elemento significativo (de combate) na consolidação de um discurso específico (posição) dentro desse território. Para além dos prefácios é composto por três linhas narrativas: os textos dos comissários (Pedro Gadanho, Pedro Bandeira, Nuno Grande, Pedro Jordão, Luís Santiago Baptista, Ricardo Camacho, Pedro Machado Costa); fotografias das obras seleccionadas (e não só); e descrições críticas sintéticas das 80 obras.
     As diferentes narrativas entrecruzam-se nas fotografias que navegam entre as páginas e os textos, para que as diferentes formas de apresentar os projectos “dialogueme “polemizem entre si. Seguem-se 80 fichas que não chegam a descrever os projectos e não acrescentam nada particularmente relevante. A irrelevância das fichas confirma que se trata de um livro que utiliza as 80 obras para construir um discurso, não é um livro que as permita ler e compreender cabalmente. Aparentemente é uma posição justa, na medida em que a missão Habitar Portugal é obter um retrato de família.
     Depois dos preliminares, o texto inaugural – “Sob influência: do vulcão à pool genética– entra ao ataque. Pedro Gadanho procura caracterizar a ansiedade produzida na coexistência de um terreno fértil e simultânea devastação sob a influência de Álvaro Siza e da arquitectura “portoguesa. A primeira frase é contundente: “As coisas estão a mudar.” A segunda frase é depreciativa: “Muitos podem nem sequer se aperceber disso.(p. 28) Referindo-se ao vulcão e socorrendo-se do epíteto “escola portuguesa” – que Gadanho considera cínico e eu prefiro entender como irónico, seguramente cunhado para identificar o modo como, sob um mesmo chapéu-de-chuva familiar, se arrumavam coisas muito diferentes –, Gadanho explica que essa arquitectura já não é para uso exclusivo das elites e se tornou uma prática, além de hegemónica, corrente e banalizada (no seu texto, Nuno Grande faz a crítica a essa “souto-de-mourização” da paisagem). Gadanho explica ainda que há, em Portugal, quem procure libertar-se dessa influenza, conquistando novos terrenos, eventualmente mais fecundos e seguramente mais saudáveis para a prática da arquitectura. As obras produzidas entre 2006 e 2008 e apresentadas no livro são, para Gadanho, a demonstração dessa possibilidade de emancipação.
     Seguem-se os vários textos dos comissários, competentes no lançar de problemas teóricos concorrentes com a problemática geral do livro e, simultaneamente, capazes de se constituírem como ensaios com autonomia e conteúdos específicos. Os textos dividem-se segundo a repartição regional adoptada na exposição (Norte, Área Metropolitana do Porto, Centro, Área Metropolitana de Lisboa, Sul, Ilhas e Fora de Portugal). Nestes textos cumpre-se o desígnio do livro: utilizar as obras para escrutinar, analisar e debater a produção recente da arquitectura em Portugal e, mais do que criticar as 80 obras em particular, justificar a sua escolha e pertinência.
     No último desses textos, Pedro Gadanho fornece a chave do que nos obriga a reequacionar o território do debate da arquitectura portuguesa: em Portugal existe uma “espécie de região demarcada da arquitectura internacional [...], uma região de fronteiras legalmente delimitadas, dotada de condições específicas, onde se fabrica um produto cujas características são exclusivas e aparentemente irreproduzíveis”. (p. 185)E isto torna clara a argumentação do livro:“Dificilmente se poderá ver a região demarcada da arquitectura portuguesa como produtora de uma casta pura [...], somos, como sempre fomos, os mestres da miscigenação, dos hábeis produtos híbridos, das linguagens da creolização.”(p. 186-188) Com essa demonstração, evidente a partir das obras seleccionadas lá fora, sugere que está ultrapassado o vulcão que, na sua opinião, teria excluído “a miscigenação,o delírio, a experimentação formal e a exuberância do gesto barroco”. (p. 35)
     A surpresa não poderia ter sido maior. O argumento da “variedade da arquitectura e das cidades portuguesas”, dasua espontaneidade” e do “seu eclectismo”, encontra-se em pleno magma do vulcão. Não faltam defensores a garantir que o ar de família da arquitectura portuguesa nasce da “capacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de natureza formal ou estilística”2. Afinal, à excepção da possibilidade de a arquitectura ser um resultado da biotecnologia laboratorial, de ensaios genéticos e da selecção artificial das espécies, parece que o único desacordo é a ambição elitista da arquitectura. Se, sob a influência do vulcão existe a convicção de que é bom fazer banal, desde que seja bem feito, sabendo-se que essa banalidade é muito heterogénea3, parece que longe do vulcão se pode até fazer mal feito, desde que não seja banal.
     Lido o livro, compreende-se a decisão gráfica e editorial em destacar o texto da versão inglesa em detrimento da versão portuguesa. O seu argumento não é apenas a marcação de uma posição de combate no território do debate sobre a arquitectura produzida pelos arquitectos portugueses. É, também, a oferta internacional de uma arquitectura portuguesa que se quer apresentar servida num “pacote” original. Nesse sentido ele é eficaz. Contudo, não deixo de me questionar sobre a eficácia da posição conquistada e, sobretudo, sobre a eficácia de um retrato tirado desta perspectiva. No debate interno, uma crítica “sem papas na língua”(p. 24) só faz sentido se houver respeito e vontade de enriquecimento mútuo – não me parece que os textos do catálogo mais linguarudos demonstrem essa vontade. Na apresentação externa, a polarização das polémicas internas esvazia o retrato de família que, à distância, poderia fazer algum sentido.|

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1 Cf. João Afonso; Cristina Meneses, (coord.). Habitar Portugal 2000/2002. Lisboa : Ordem dos Arquitectos, 2003. Ana Vaz Milheiro (coord.). Habitar Portugal 2003/2005. Lisboa : Mapei/Ordem dos Arquitectos, 2006. Note-se nos dois catálogos: a responsabilidade editorial é aparentemente independente do comissariado das exposições, comandadas por João Rodeia, José Adrião e Nuno Grande em 2003 e por José António Bandeirinha em 2006.

2 Alexandre Alves Costa. Arquitectura Portuguesa. in Textos datados. Coimbra : e-d-arq, 2007 [1993-2006].

3 Bandeirinha, José António. “Simples? A propósito da exposição de 77 obras de arquitectura”. in Ana Vaz  Milheiro (coord.). Op. cit.


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